Meu irmão me pediu para completar uma "lista" de recordações que ele começou,fruto de acontecimentos engraçados,nostálgicos ou curiosos que fizeram (ou ainda fazem)
parte de nossas vidas.Também tenho muitas coisas boas e/ou engraçadas para lembrar,algumas comuns a mim e a voce,meu irmão.Outras,fruto de minha vivência
individual.Mas,peço a voce para esperar mais um pouco,pois hoje me deu vontade de falar sobre um tema só:nossa avó paterna,dona Ursulina,como era chamada por todos e
"Dodoinha",como era carinhosamente chamada por nós,seus netos.
Nesse momento,quero me prender somente a ela,que é ,sem dúvida,a minha maior saudade hoje.Essa mulher simples,inteligente e amorosa,cujo amor e desvelo por nós,seus
netos, e por todas as coisas vivas me fez conhecer muito cedo alguns valores que carrego comigo até hoje.
Na época,eu era muito menina e não conhecia ainda o real sentido da palavra "SOLIDARIEDADE",mas na prática (hoje eu tenho essa consciência) assisti,ao vivo e em cores
às mais lindas lições de amor ao próximo e desapego material.Minha avó seguia à risca o "PEDI E RECEBEREIS"e, esqueçendo que não era o CRISTO,jamais negou ajuda a
nenhum dos necessitados que a procuravam.Doava remédios,alimentos,roupas,dinheiro,enfim,o que estivesse ao alcançe de sua mão e pudesse saciar alguma necessidade
alheia.Na pequena fazenda em que morava com meu avô,não faltavam "visitas" à hora do almoço.Eram os sertanejos humildes e/ou suas famílias que moravam nas redondezas e
vinham saciar sua fome em casa de meus avós.A mesa estava sempre cheia e mesmo depois da hora do almoço não faltava comida,nem boa vontade para atender aos
retardatários.Havia,infelizmente,em meio aos carentes,os aproveitadores,mas o coração de minha avó não conseguia fazer essa distinção e ela servia a todos com
simpatia e dedicação.Meu avô,mais racional,advertia:"Mulher,desse jeito voce vai acabar com tudo que nós temos".Palavras ao vento.Ela sempre tinha argumentos para se
contrapor:"Mas o coitado tá com fome,nós não podemos deixar que ele morra à míngua,meu velho..."E meu avô,mesmo contrariado,cedia.Afinal, a última palavra era sempre
dela mesmo...
Nas mercearias próximas,que lá eram chamadas "bodegas",aonde meu avô tinha crédito,era comum chegarem bilhetinhos de minha avó,autorizando o "bodegueiro" a entregar
gêneros alimentícios aos seus protegidos.Minha avó também era muito delicada e,apesar do pouco estudo,curiosamente,escrevia e se expressava muito bem.Então,esses
bilhetinhos ,geralmente,começavam mais ou menos assim:"Caro senhor Fulano-De-Tal,peço,por obséquio,que entregue a esta gentil e necessitada moçinha,essa listinha de
compras que escrevi abaixo.A pobre precisa muito,pois não tem o que comer em casa.Deus todo poderoso irá abençoar ao senhor e a sua família por essa caridade..."
E por aí ia.Até parece que quem ia pagar era o bodegueiro e não ela (aliás,o meu resignado avô.Rs!)
Nas farmácias,era a mesma coisa:quando alguém adoecia e não tinha dinheiro pra comprar remédios,ia logo pedir socorro a"D.Sulina",como alguns a chamavam.E haja
bilhetinho nas farmácias,de "entregue isso a esse rapaz,entregue aquilo a essa senhora..."
Detalhe:uma época,meu avô resolveu montar um mercadinho para venda de gêneros alimentícios,dentro da fazenda dele.Meu pai também também montou uma pequena farmácia.
Ambos faliram rapidinho.Adivinhem porque!Minha avó dava não somente o pacotinho de açucar ou de arroz,mas a saca inteira,se alguém precisasse.Remédio então...tava
sempre faltando pra vender na dita farmácia,porque ela doava quase tudo.
Enfim,a vontade de ajudar de minha avó não conhecia limites,não media consequências.E isso,infelizmente,gerou o lado ruim da história:Com o passar do tempo, as dívidas
se acumularam e meu avô precisou vender seus bens para pagá-las.Então,obviamente,chegou um tempo em que minha avó não tinha mais condições de fazer suas
caridades,materialmente falando.Faltava mesmo até pra eles próprios.Foi muito triste ver os dois, que sempre tiveram uma vida farta,não terem uma velhice
tranquila,como mereciam.Meu avô já não conseguia mais prover o próprio sustento (como ele previra)e viveu seus últimos anos graças ao apoio e ajuda da família.
Mas,apesar de ter dissipado todos os seus bens (e aqui,só o bom DEUS para julgar se certo ou errado) eu NUNCA ouvi minha avó dizer que se arrependia das suas
caridades.E o mais incrível:o que mais a afligia nesse tempo de dificuldades,não era a sua própria situação material,mas A IMPOSSIBILIDADE DE CONTINUAR AJUDANDO AS
PESSOAS NECESSITADAS,COMO SEMPRE FEZ.Isso,sim,era o que mais a entristecia.Ví muitas vezes seu rostinho alegre se anuviar ao ouvir o pedido ou uma queixa de algum
necessitado que ela não podia mais ajudar.Não poder suprir as necessidades de seus protegidos,isso sim,a entristecia profundamente.
É importante salientar que estou falando aqui apenas da caridade "material" que minha avó praticava,mas ela não era a única.Junto com o remédio para os males do
corpo,vinha também o alento para a alma do doente.Ela sempre tinha palavras de esperança e de apoio para aqueles que a procuravam.Estava sempre disposta a ouvir os
queixumes e lamentos de todos.Não foi pra menos que minha avó angariou uma verdadeira legião de amigos.Ah,isso nunca lhe faltou.
Foi também com ela que aprendi a amar os animais e todas as coisas vivas que Deus criou.Ela,como eu, não suportava maltratos a eles e quando sabia de algo dessa
natureza,logo chamava meu avó pra tomar satisfação.Eu sempre corria pra ela,quando via algum cavalo,ou boi ou qualquer outro bicho passando por algum sofrimento.Eu
pedia ajuda e ela "obrigava" (mesmo!) meu avô a tomar as providências necessárias.
E quanto à sua dedicação a nós,seus netos,bem aí é outra história que pretendo contar em outra oportunidade.Por enquanto,vou dizer apenas que a melhor parte da minha
infãncia,as melhores lembranças que tenho,e muito do que que sou,devo aos seus ensinamentos.vivi momentos maravilhosos em minha querida Armênia (nome da fazenda de
meus avós),viajei nas estórias que ela me contava,nas canções que cantava..ela coloria o mundo para nos mostrar.
Minha avó querida,quantas saudades...não sabe como lamento tanta coisa que poderia ter feito e não fiz,que poderia ter dito e não disse.Me perdoe por eu não ter
tido,naquele tempo,maturidade suficiente para entender e agradecer o tesouro que Deus colocou em minha vida.Acho que é assim que a vida nos ensina,não é?Vamos
aprendendo com nossos tropeços.E tentando melhorar...
Mas,SEI que ainda vamos nos encontrar um dia e aí eu vou poder lhe abraçar forte e dizer tudo aquilo que trago guardado em meu coração.
Ah,dá um grande abraço em DEUS por mim,porque a senhora só pode estar bem próxima dele...
Beijo e "bença".
Iris.(Irinha,como a senhora me chamava).